Última atualização em 22/03/2024, 16h27min por A Trombeta
Por José Saul Martins*
Em mais uma experiência como caminheiro, entre os dias 7 e 12 de janeiro, embarquei em uma jornada de introspecção e descobertas ao percorrer o Caminho do Mosteiro. Ao atravessar os municípios de Piracicaba, Charqueada, Ipeúna, Itirapina, Brotas e Torrinha, fui guiado por paisagens pitorescas e encontros inspiradores que moldaram o cenário dessa extraordinária peregrinação.
As crônicas que compartilharei ao longo deste conteúdo buscam expressar não apenas a experiência física dessa caminhada, mas também as reflexões profundas que surgiram a cada passo. O recém criado Caminho do Mosteiro, com seus 135 quilômetros, traz em seu percurso, como a maioria dos caminhos, um legado histórico e espiritual proporcionando um terreno fértil para a conexão com a natureza, a espiritualidade e a riqueza cultural dessas localidades.
A cidade de Piracicaba, com o rio afamado, marcou o início desta aventura, enquanto Charqueada revelou seu charme histórico e cultural. Em Ipeúna, a simplicidade da vida rural se mesclou com a autenticidade das pessoas locais, proporcionando uma experiência enriquecedora.
A passagem por Itirapina e suas paisagens exuberantes, seguida pela atmosfera acolhedora de Brotas, trouxe consigo uma diversidade de emoções e aprendizados. Por fim, Torrinha no Mosteiro do Paraíso, encerrou a jornada com sua atmosfera tranquila adequada para concluir e alinhar os pensamentos para o ano de 2024.
Ao longo desses dias, cada passo foi mais do que uma simples movimentação física; foi uma oportunidade de mergulhar nas histórias desses lugares, ouvir as narrativas das pessoas das pousadas, vilarejos e refletir sobre a própria jornada pessoal. A série de crônicas que aqui apresento é uma tentativa de compartilhar as múltiplas camadas de significado que o Caminho do Mosteiro proporcionou, através da lente singular de minha experiência.
Convido você, caro leitor, a embarcar nessa jornada através das palavras que buscam transmitir não apenas os desafios e conquistas do percurso, mas também a essência transformadora que reside em cada trilha, em cada encontro e em cada reflexão ao longo deste extraordinário caminho.
Dia 1 – 23km – Piracicaba/Charqueada
Casos de onças
Digamos que depois dos 300 km do Caminho da Fé, mais 200 km do Caminho de Caravaggio não sou mais marinheiro de primeira viagem, mas os caminhos nos colocam a provas. Nesse primeiro trecho de hoje no Caminho do Mosteiro, onde pretendo romper os 135 km, o que pegou pesado foi o sol causticante. Pisei no estradão já batia 6h30, mas até a metade da manhã foi bem. Parei em dois povoados conversei com moradores e ouvi casos de onça. Taquipariu só faltava onça nesse calor da p… Segui em frente e vi apenas teiús, seriemas, passarinhos, um sagui desgarrado e a cidade de destino do trecho faltando uns 10 km ainda. Não chegava nunca. Apesar de ter água na matula economizei ao máximo e isso deu uma desidratada desértica. Até umas tabuletas anunciando um tal de Hospício que na verdade era um bar. Se fosse mais tarde tomaria uns tragos com os “loucos”. Estava fechado. Cheguei às 12h com uma fome de dragão e uma sede de 20 camelos. Amanhã tem mais. Mais água também (risos agora).
Dia 2 – 24km – Charqueada/Ipeuna (Pousada Country)
Treinando matemática
Após o perrengue de ontem com sol brabão e pouca água refiz alguns cálculos adaptáveis. Sair mais cedo, mais água e acelerar o passo um cadim mais. Claro sem deixar de lado a magia das caminhadas que é a apreciação da natureza e reflexões. Sem prosas hoje. Não cruzei uma boa alma. No primeiro terço do trecho até passei num pequenino distrito que ainda dormia. Exceto os cachorros que davam boas vindas e outros mais rabugentos. Sol no lombo. No segundo terço foi o raspar no cascalho do solo rodeado por canaviais. Todinho. Sem sombra. Não vi bicho algum. Se não fosse os “gafanhotos” da Raízen acharia que estava perdido pela ausência de gente e “setas amarelas” que servem de rumo do caminho. Na segunda paradinha para hidratação contei a água e vi que tinha a metade ainda fresca. Ajeitei a matula nas costas e quando me preparava psicologicamente para mais um dia difícil notei que o caminho ganhou sombras. Sombras em abundância. Opa! Maravilha seria o último terço. E foi. Tinha Ipeúna antes da pousada. Pedi um “PF” e devorei o que chamam de prato executivo. Cheguei às 12h20 no final do trecho. O gerente Edson me recebeu parecendo me conhecer por mais de 50 anos. No trecho assombrado pude ver vários carcarás com sua boina branca virada. Maritacas em sua monogamia eterna e até um tamanduá que cruzou minha frente não dando tempo de fazer uma foto. Amanhã é outro dia. Que venha.
Dia 3 – 20 km – Ipeuna/Itirapina (Pousada Pedra Branca)
Sob os olhares dos búfalos
Hoje sai da pousada bem cedinho tentando abrandar o sol. Como parti sem café o gerente da pousada me deu algumas bananas e quatro fatias de bolo de fubá que saboreie com uma vista fantástica do Paredão. Isso foi no quilômetro 10. Até nesse ponto estava tudo maravilhoso às 7h. Daí em diante o caminho foi ficando mais acidentado e com poucas setas indicativas. Senti estar perdido. Até os rastros de duas bikes que estavam a minha frente desapareceram. Tô ferrado – pensei. Sem sinal de internet ou telefone. Zerado. Bora tocar pra banda que minha bússola mental indicava. Cruzei um peão que estava indo buscar uma boiada. Ele disse devia ficar esperto, pois retornaria pela mesma estrada que estava. Andei uns cinco quilômetros mirando as laterais. Subo no barranco ou descambeteio na ribanceira – se por ventura a boiada viesse. Não veio. Aquela do peão não veio. Após circundar um morro subindo pela estradinha escutei várias vacas descendo até ao riacho saciar a sede. Justo agora. Toquei elas e saíram do caminho, exceto uma, justamente a guampuda, mais invocada ficou na estrada e me encarou. Blefei com um grito acenando o cajado e ela se juntou as demais fora da minha rota. Ufa! Se ela mandasse um “seis ladrão” me ferraria. Um pouco mais adiante, sem saber onde estava, ao chegar numa baixada uma manada de búfalos pastava tranquilamente a margem do meu caminho. Foi eu chegar mais perto, todos em sincronia perfeita me manjaram sem piedade. Sei que búfalo é um bicho ignorante e não truquei em falso como fiz com a guampuda. O jeito foi pular a cerca e dei uma volta. Eles continuaram me olhando. Pararam até de pastar. Livre das vacas e dos búfalos fiz mais uma parada. A agua estava acabando. Mas logo cheguei a pousada da dona Roseli (Pousada Pedra Branca). Figura ímpar em companhia de seu netinho Maicon. Prosa agradável e um bom almoço. Amanhã tem mais trecho e detalhes do jantar de hoje. Que venha!
Dia 4 – 25 km – Itirapina/Itirapina (Sitio Pinheirão – Itaqueri da Serra)
Mais um dia pelo caminho
Novamente parti bem cedo da pousada. Após o café da dona Roseli segui para mais um trecho. Logo na saída, ainda no crepúsculo avistei vários cachorros-do-mato saindo de uma moita. Filhotes e a mãe. Começando bem o dia. Tempo estava fresco e uma trilha cheia de sombra. Mais bichos, como tucanos, seriemas e passarinhos de todos os sons. No finalzinho a coisa deu uma engripada numa subida com mais de 50 graus de inclinação. Sorte que tinha apenas uns mil metros de extensão. Fui recepcionado com um carinho enorme pelos anfitriões Marcia, Marcelo e almocei junto a eles e familiares. Visitei as poucas ruas de Itaqueri da Serra e fiz alguns registros fotográficos. Muita história do século 19. Amanhã tem mais um trecho.
Dia 5 – 30 km – Itirapina/Brotas (S. Sebastião da Serra – Pousada Rota das Cachoeira)
Encontro com o prefeito
A crônica de hoje contém algumas ironias e observações. Caminho duro e longo que por sorte o sol ficou acanhado em sua maior parte do percurso e isso acelerou mais a caminhada. Desde o início dessa empreitada constatei o descarte irregular de resíduos as margens das vias. Isso parece endêmico em nossa sociedade moderna. Falamos sobre isso por onde passamos com os pousadeiros e comerciantes. O jovem Money (esse é o nome dele) dono de uma simpática lojinha em Itaqueri da Serra, pequenina e antiga vila onde nasceu Ulysses Guimarães. Ao chegar ao vilarejo você já respira uma dose extra de paz e harmonia. Uma dose extra, porque em todo o caminho essas são as premissas dos caminheiros e peregrinos. Neste trecho os avistamentos da fauna e flora são ricos. Já quase chegando ao destino de hoje tentei fotografar uma cachoeira, mas a área era particular e não foi permitido meu acesso apenas para fotos. Poderia frequentar, mas teria de pagar o que chamam de “Day use”. Não foi hoje que usei por um dia a cachoeira. Exausto e estabelecido na pousada fui almoçar e eis que prefeito de Brotas, Leandro Corrêa, me esperava, pois além de me receber aproveitou para inaugurar uma praça no patrimônio São Sebastião da Serra (risos). O elogiei e parabenizei por bem cuidar do município de Brotas. Após o almoço voltei à pousada aos cuidados da Cris e esposo Fábio. Amanhã mais um trecho, o último, com mais histórias.
Dia 6 – 13 km – Brotas/Torrinha (Mosteiro Paraíso)
Chegando ao Mosteiro do Paraíso (São José)
Todos as previsões meteorológicas davam que hoje choveria de baldes na região de Brotas e Torrinha, justamente onde estaria passando concluindo os 138 quilômetros do Caminho do Mosteiro. Mas justo hoje chover de baldes… As mocinhas da TV erraram nas previsões e até a hora de meu retorno para Fernando Prestes não tinha chovido uma gota. Este último trecho já conhecia e sabia que era bem leve além de curto. Nenhum percalço, exceto o pastor alemão que saiu desesperado latindo de sua casa, quase a 100 metros da margem da estrada, chegou bem próximo, mas deu uma brecada que chegou a travar a lona quando disse “sai pra lá” acenando com o cajado. Se eu for nesse louco ele me bate com aquele pau – deve ter pensado o pastor (um cão lindo e bem cuidado por sinal). Ficou resmungado do lado de lá da cerca e segui em frente. Algumas fotos e a recepção no Mosteiro do Paraíso pelos padres Nilton e Marcos. Me proporcionaram um belo banho e um café. Por falar em café o mosteiro produz um de excelente qualidade. Trouxe um quilo para casa. Logo em seguida, o Almeida e Tânia chegaram para me “resgatar” e voltamos para casa. Novas lições, reflexões e mais um caminho concluído. Colaboração fotográfica nesta última etapa de Tânia Manjerão.
*José Saul Martins – Jornalista diretor do jornal e site A Trombeta
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