Última atualização em 05/02/2023, 20h07min por A Trombeta
Reedição de “Quarto de Despejo”, publicado há 60 anos, e homenagens mostram importância da “escritora favelada”
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tinha muito contra ela. Negra, mãe solo, pouca escolaridade – chegara até o segundo ano do fundamental –, catadora de papel, favelada. A vida não parecia sorrir muito para aquela mulher nascida em uma comunidade rural de Sacramento, Minas Gerais, e que os caminhos levaram para São Paulo, onde trabalhou como empregada doméstica até engravidar, ficar sem emprego e ir parar no Canindé, na primeira grande favela da capital paulista.
A luz dos seus dias vinha das leituras no barraco e das anotações cotidianas registradas nos cadernos que encontrava pela rua. E foram desses relatos que surgiu Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960), seu primeiro e mais famoso livro, um arrasa-quarteirão literário que a projetou internacionalmente.
A história de sua publicação passa pela visita do jornalista Audálio Dantas, na época trabalhando para a Folha da Noite, pela favela do Canindé. Incumbido de escrever sobre a comunidade que se estendia às margens do Tietê, lá topou com Carolina e suas dezenas de cadernos de anotações. Percebeu de imediato a força daqueles escritos – eles já eram a própria matéria que deveria escrever. Tratou de publicá-los, com a história de Carolina, na edição de 9 de maio de 1958 da Folha da Noite. O interesse foi intenso e no ano seguinte a prosa da autora preenchia também as páginas da revista O Cruzeiro. Editado por Dantas e publicado em 1960, Quarto de Despejo se tornaria um best-seller, tendo sido traduzido para 13 idiomas e adaptado para o teatro e a televisão.
“O sucesso do livro – uma tosca, acabrunhante e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante de vida – foi também o sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade”, escreveu Dantas no prefácio de uma edição de 1993 da obra.
Composto a partir dos diários de Carolina, escritos entre 1955 e 1960 com notações de acontecimentos e reflexões do dia a dia, o livro impacta por sua lucidez e crueza. Mesmo com o trabalho realizado por Dantas, que suprimiu trechos considerados repetitivos e alterou a ortografia de algumas palavras para tornar o texto mais palatável, o estilo da autora continua direto como um murro na cara. O português lapidado pela conjugação do baixo aprendizado escolar e o grande ensino da vida fazem a prosa fluir com vigor:
“Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”
Na sucessão de dias que correm nas páginas do livro, Carolina expõe e analisa sua condição de mãe solteira e moradora da favela. Não guarda palavras para falar dos vizinhos – ora com críticas agudas, ora com elogios ternos – e circunscreve os limites de seus prazeres e suas dores. E junto da história da própria Carolina é uma São Paulo dos oprimidos, dos desfavorecidos e dos persistentes que vai se desenhando.
“Ela rejubilou-se e começou dizer que o Dr. Adhemar de Barros é um ladrão. Que só as pessoas que não presta é que aprecia e acata o Dr. Adhemar. Eu, e D. Maria Puerta, uma espanhola muito boa, defendíamos o Dr. Adhemar. D. Maria disse:
– Eu, sempre fui ademarista. Gosto muito dele, e de D. Leonor.
A Florenciana perguntou:
– Ele já deu esmola à senhora?
– Já, deu o Hospital das Clínicas.”
“Carolina é uma realista irônica; Lukács diria que é uma realista crítica”, pontua o escritor e jornalista Alberto Moravia no prefácio de uma edição italiana de Quarto de Despejo, de 1962. “De fato, o realismo de sua prosa simples, plana, clara, familiar nunca é naturalista: uma ironia sutil e difusa lhe dá uma dignidade clássica. Trata-se provavelmente de uma ironia, por assim dizer, coletiva, a ironia da favela da qual essa mulher inculta soube tornar-se a porta-voz.”
Edições comemorativas
Agora, em seus 60 anos, completados em 2020, a obra acaba de ganhar edição comemorativa pela Editora Ática. O volume reúne manuscritos originais da autora, fotografias, prefácios, ensaios acadêmicos e artigos de jornal – como os textos de Dantas e Moravia dos quais as citações acima foram extraídas.
Um segundo tomo também faz parte das comemorações e traz a adaptação para teatro de Quarto de Despejo, feita por Edy Lima e nunca publicada em livro. A direção da montagem original, datada de 1961, ficou sob responsabilidade de Amir Haddad. No papel de Carolina estava Ruth de Souza, que iniciara a carreira no Teatro Experimental do Negro (TEN) e foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1945, além de ostentar o título de primeira brasileira a ser indicada ao prêmio de Melhor Atriz em um festival internacional de cinema – no caso, o de Veneza, em 1954.
“Em geral, quem leu Quarto de Despejo mostra-se curioso em saber como o tema foi transposto para o palco”, escreve Edy Lima no prefácio do livro. “Quando se fala em adaptação, pensa-se logo em transformar em ação dramática o entrecho de uma obra de ficção. Sendo Quarto de Despejo um diário e principalmente um levantamento sociológico, não tem entrecho no sentido em que este ocorre na obra de ficção; portanto, no sentido literal, não há possibilidade de transpô-lo. Era necessário escrever uma peça e não adaptar uma história. Foi o que fiz. E fazendo isso mantive a atmosfera do diário, o problema por ele levantado e o sentimento que o inspirou.”
Fonte: Luiz Prado/Jornal da USP