Última atualização em 20/03/2023, 6h16min por A Trombeta
Por Dennis de Oliveira e Vitor Blotta, professores da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
No dia 25 de junho de 2022, a atriz Klara Castanho divulgou uma carta pública nas redes sociais informando que havia sofrido um estupro tempos atrás e que, traumatizada, não denunciara o crime. Soube tardiamente que estava grávida e decidiu dar à luz ao bebê, mas o entregou à adoção. Mas essa história não veio a público por vontade própria da atriz, que havia preferido mantê-la no âmbito privado, mas sim porque ela se sentiu obrigada a se posicionar diante de uma série de informações divulgadas pelo jornalista Leo Dias em uma entrevista a um programa de televisão, e em seguida no portal Metrópole, com o reforço da youtuber Antonia Fontenelle. Esse caso levanta uma série de problemas em torno da ética do jornalismo, da indústria das celebridades e do negócio das mídias sociais que gostaríamos de problematizar aqui.
Um primeiro problema é a relevância pública da informação. As perguntas que devemos fazer são: é de interesse público discutir as formas legais de interrupção da gravidez, e as melhores condutas em casos de gravidez decorrente de estupro? Sim. É de interesse público o caso específico de uma mulher que, engravidando após sofrer um estupro, decide fazer um aborto legal ou entregar legalmente o bebê a quem deu à luz para adoção? Não. Por isso mesmo existe o segredo de justiça, o sigilo médico e o sigilo de fonte, institutos pouco respeitados em nossa sociedade.
Ocorre que, em tempos de indústria das celebridades, “indústria de fofocas” e de “colunismo social”, potencializados pelas mídias digitais, prevalece a posição de que interesse público e “curiosidade do público” sobre a vida privada de celebridades são a mesma coisa. Não são. Interesse público diz respeito a informações que afetam a vida da totalidade ou maioria das pessoas, a direitos fundamentais, à ordem, à saúde e à moral públicas. Reconhecemos que as separações não são tão claras, e que corremos o risco de silenciar o interesse público sobre aquilo que é “pessoal”. O que é claro é que a audiência não deve ser a medida mais importante da avaliação sobre o interesse público ou jornalístico de uma informação.
O segundo elemento é que os dois diretamente envolvidos na divulgação – Leo Dias e Antonia Fontenelle – tentaram se eximir de qualquer culpa porque “não divulgaram o nome da atriz”, embora os indícios apresentados possibilitassem a quem estivesse mergulhado nesse universo das celebridades descobrir que era Klara Castanho. Ora, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros é claro ao determinar que o jornalista não pode “expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação, mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicação de locais de trabalho ou residência, ou quaisquer outros sinais;” (artigo 7o, IV). Os pedidos de desculpas de Leo Dias e do site Metrópoles são louváveis, mas tardios. Os danos múltiplos já ocorreram, tanto que a Comissão de Ética da Associação Brasileira de Imprensa emitiu nota condenando o caso, e a Federação Nacional dos Jornalistas informou que vai encaminhar denúncia contra Leo Dias ao Sindicato de Jornalistas Profissionais do Distrito Federal.
Em terceiro lugar, após se manifestar num tom de criminalização da atriz por ter encaminhado a criança para adoção, um ato legítimo e previsto em lei, e que não tem nada a ver com a acusação de “abandono de incapaz”, Antonia Fontanelle ainda defendeu uma inconstitucional “pena de morte para estupradores” em um dos seus vídeos, tentando desviar do assunto e se colocar fortemente contra a violência sexual.
O professor Rogério Christofoletti fala que o jornalismo é uma narrativa que nos conecta a uma dimensão de espaço-tempo. Esta afirmação se articula diretamente com a definição conceitual de jornalismo feita por Adelmo Genro Filho de ser uma ação cultural típica da sociabilidade, criada pelos arranjos institucionais do capitalismo liberal, que possibilita a apropriação do conhecimento da realidade a partir da singularidade dos fatos. Uma das noções de cidadania daí decorrentes se dá por meio da sensação por parte do sujeito de estar participando da construção da história em cada fragmento da cotidianidade. Se o conhecimento produzido pelo jornalismo não é o da universalidade da ciência nem o da particularidade da arte, ele transita entre ambos e possibilita este tipo de conexão com a dimensão do espaço-tempo pari passu à sua construção.
Mas não podemos esquecer que essa construção de narrativa passa necessariamente por nexos filosóficos da ética: são perguntas como “o que é melhor divulgar, levando em conta quem nós somos e quem queremos ser enquanto sociedade?” que devem guiar essa articulação de fragmentos do cotidiano a construir essa conexão com a dimensão de espaço-tempo. Não se trata somente de atentar para a veracidade ou o respeito a normas jurídicas.
Tal discussão ganha ainda mais relevância com a atual crise do jornalismo, resultado da perda do monopólio da mediação jornalística que possibilita essa conexão com a singularidade. As tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs) possibilitam que qualquer sujeito conectado às plataformas digitais de rede possa disseminar informações. Ou seja, não importa se se é jornalista ou não. Nossa responsabilidade com a informação é proporcional ao nosso “poder de mídia”, ou o alcance e visibilidade de nossas manifestações. Ao mesmo tempo, a pressão sobre o jornalismo aumenta ainda mais pelo fato dessa atividade de natureza pública ser realizada, principalmente, por estruturas privadas e mercadológicas. Essa perda de monopólio significa de imediato uma queda no faturamento das empresas – e, diante disso, a opção mais sedutora e imediata é justamente repetir as mesmas lógicas das informações veiculadas pelas TICs sem esta mediação jornalística.
Nesse contexto, jornalistas profissionais são eclipsados pelos influenciadores digitais, que operam pela busca de “likes”, de “lacração nas redes”, de “views” e toda sorte de repercussão digital. Por isso, o potencial de monetização que transforma esses influenciadores em “empreendedores de narrativas informacionais” se apresenta como uma possibilidade de novo modelo de negócios para as empresas de comunicação.
Além disso, esse ambiente informativo favorece narrativas extremistas, o que contribuiu para o avanço da extrema direita na esfera política. Arroubos machistas e moralistas garantem de cara uma certa repercussão. Mas novamente a pergunta que fica é: qual a relevância pública de um episódio que aconteceu na intimidade e na privacidade de Klara Castanho? Não se trata apenas de respeitar a decisão soberana da atriz de não tornar esse fato público, mas que esse episódio na sua singularidade não é de interesse público.
Aqui retomamos novamente as reflexões de Adelmo Genro Filho quando fala que o sensacionalismo no jornalismo ocorre quando ele se fecha na singularidade, e isso ocorre também muitas vezes na imprensa tradicional. Toda a argumentação de Fontenelle, por exemplo, fica presa ao episódio e à personagem Klara Castanho. O drama da atriz, por exemplo, não é em nenhum momento ampliado para se conectar a outras singularidades como os traumas vividos por mulheres vítimas de crimes sexuais. É esse mesmo discurso particularista e moralista que muitas vezes impede mulheres estupradas de procederem ao aborto previsto em lei (como quase aconteceu com uma menina de 10 anos, vítima de estupro em Santa Catarina, quando uma juíza tentou impedir que o procedimento fosse feito), ou ainda o direito das mulheres não quererem ser mães e encaminharem crianças para adoção. Não, o caso ficou circunscrito a uma avaliação do comportamento pessoal da atriz como se os disseminadores da informação chamassem o público para serem inquisidores.
O resultado disso é uma disputa personalista e maniqueísta de quem é algoz, vítima, culpado ou inocente. Debates com um mínimo de racionalidade, que são a essência da esfera pública política, passam ao largo disso. A era do esclarecimento foi obliterada em tempos de mídias sociais por crenças obtusas. Perdem as mulheres, perde o jornalismo, perde a democracia.
Fonte: Jornal da USP
Imagem: Freepik
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