Última atualização em 09/04/2023, 18h01min por A Trombeta
No dia Mundial da Água, pesquisadores da Unesp debatem utilização de recursos hídricos superficiais e subterrâneos do estado. Fatores econômicos têm favorecido produtores rurais médios e grandes a investir na irrigação, mas há limites para o crescimento, e problemas já são visíveis.
“Perto de muita água, tudo é feliz”, já observava Guimarães Rosa, ao devassar a vida em meio ao cerrado brasileiro nas páginas épicas de Grande Sertão: Veredas. E, na data em que comemoramos a trigésima edição do Dia Mundial da Água, instituído pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) em 1993, pesquisadores e ativistas vêm a público para nos alertar do risco de habitarmos um mundo mais seco e menos feliz já no futuro próximo. E, como mostram os estudos desenvolvidos por docentes da Unesp, esse quadro aos poucos está se delineando no espaço dos rios, açudes e aquíferos do Estado de São Paulo.
Segundo o relatório “State of the world’s drinking water”, publicado pela ONU, aproximadamente 25% da população mundial não tem acesso à água. No Brasil, o Plano Nacional de Segurança Hídrica identificou 60,9 milhões de pessoas que vivem em cidades com menor garantia de abastecimento de água. A previsão é que esse número suba para 73,7 milhões de pessoas até 2035, caso não haja mudanças no uso e na gestão dos recursos hídricos em nosso país. (Veja quadro abaixo.)
Entre os desafios para assegurar a continuidade do acesso à água, em quantidade e qualidade necessárias para o bem-estar da população, está o agravamento das mudanças climáticas, que tem gerado períodos de secas e inundações mais intensas. Além disso, a ONU também aponta a rápida urbanização como um dos fatores que têm agravado a pressão sobre a capacidade das cidades de assegurarem o atendimento às pessoas em situação de vulnerabilidade.
Em São Paulo, a agricultura tem sede
Embora o uso da água seja essencial para garantir a segurança alimentar, ao viabilizar a produção de alimentos, seu uso indiscriminado e sem fiscalização afeta diretamente os meios para acessá-la. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a agricultura é o setor onde a escassez de água causa maiores impactos. O setor responde pela retirada de 70% da água doce global e por um consumo superior a 90%.
Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), no Brasil, cerca de 50% da água doce retirada dos cursos d´água destina-se à irrigação. Grande parte desta subtração ocorre no contexto das bacias hidrográficas, como a Bacia Hidrográfica do Médio Paranapanema, em São Paulo. Apesar de possuir uma grande disponibilidade de água superficial e subterrânea, o Portal do Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo aponta que a bacia enfrenta conflitos de disponibilidade por conta do aumento do consumo hídrico para a agroindústria e para a irrigação.
O uso dos recursos hídricos pelos empreendimentos do agronegócio paulista na região da bacia do Rio Pardo vem sendo objeto de estudos de Edson Luís Piroli, docente da Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação da Unesp, campus de Ourinhos. Piroli, que também é membro do Comitê Federal da Bacia do Rio Paranapanema e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Médio Paranapanema, se interessou pelo tema ao constatar que a queda no nível do Rio Pardo e dos demais rios da bacia tem se intensificado ao longo dos anos. Um dos frutos desse interesse foi uma pesquisa que ele orientou, conduzida pela então doutoranda Amanda Amorim, realizada na Bacia Hidrográfica do Rio Pardo.
Os dados mostraram que, em 2000, em toda a região estudada havia um pivô de irrigação em atividade, regando uma área de 26 hectares. Já em 2021, a mesma área contava com 60 pivôs, irrigando uma área superior a 2.700 hectares. “Essa água deixa de fazer parte do sistema hídrico e passa a ser empregada na produção. Foi um aumento de mais de 100 vezes em 20 anos na extração de água”, analisa.
“É muito importante salientar que a produção agrícola que emprega a irrigação garante segurança alimentar. Não nos colocamos contra a utilização da água para irrigação. Mas, nos comitês de manejo de bacias dos quais fazemos parte, sugerimos que esse uso seja feito de maneira planejada e integrada, para que não falte água para os diversos usuários”, diz. “Não queremos que uma região faça grande retirada desses recursos, e isso implique escassez hídrica em outras regiões.”
O recurso mais extraído do subsolo do país
A retirada de água também precisa lidar com um paradoxo. É nos períodos de estiagem, quando o nível de água dos rios é menor, que se expande a retirada de água dos rios, porque não há chuva abastecendo a bacia. “Ocorre uma extração maior de água nos períodos em que o rio tem menor volume. Esse é um fator de preocupação bastante grande”, comenta Piroli. “Se o volume de água permanece o mesmo para um determinado número de atividades, a situação está equilibrada. Porém, se a disponibilidade de água é menor e o número de atividades continua o mesmo, proporcionalmente é necessário demandar mais água”, diz.
Nesses períodos em que o volume de água superficial escasseia verifica-se também uma retirada mais intensa das águas subterrâneas. Os aquíferos, reservatórios de água subterrânea, são considerados importantes aliados da segurança hídrica: neles estão presentes 97% das águas doces e líquidas do planeta, sendo considerados uma fonte estável de água em tempos de incertezas meteorológicas. Sua utilização, porém, também deve ser realizada de maneira planejada. “Precisamos de mais água mas, ao mesmo tempo, é preciso acertar o balanço entre qualidade, quantidade, conservação e exploração“, comenta Rodrigo Lilla Manzione, pesquisador do Departamento de Geografia e Planejamento da Unesp, campus Ourinhos.
O estudo “A revolução silenciosa das águas subterrâneas no Brasil” aponta que essas águas são o recurso natural mais extraído do subsolo do país; são elas as principais responsáveis por atender às demandas domésticas e ao abastecimento público. Porém, o desconhecimento a respeito delas torna-as vulneráveis ao risco de contaminação e de mau uso. Segundo informa o mesmo relatório, embora seja obrigatório o registro do poço, bem como da autorização para extração de água, não existem dados referentes ao número real de poços escavados no país usados para extração de água subterrânea. Segundo Manzione, estimativas indicam que apenas 10% dos poços existentes no Brasil são regulares. Ele considera que a fiscalização, tanto para a regularização dos poços, como para controlar o propósito de sua utilização e a quantidade de água extraída, é ineficiente. “Não há equipe suficiente para fazer a fiscalização. Os órgãos estão esvaziados, não fazem concursos há mais de dez anos, então isso não acontece”, destaca.
A falta de dados afeta a gestão de um dos recursos mais importantes para abastecimento urbano no país. Os estados mais dependentes dos aquíferos são São Paulo, Piauí, Ceará, Rio Grande do Sul, Bahia e Paraná. Dados da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo mostram que aproximadamente 80% dos municípios são total ou parcialmente abastecidos por águas subterrâneas, que atendem uma população de mais de 5,5 milhões de habitantes. “A gente precisa conhecer mais as águas subterrâneas. Nós só nos lembramos delas quando falta água, ou da chuva ou do rio, mas esquecemos que a maior parte da água que nós utilizamos é subterrânea” destaca Manzione.
A gestão das águas subterrâneas enfrenta ainda o desafio de elas estarem “invisíveis” aos olhos. Não é possível saber com exatidão a capacidade de cada aquífero, nem o quanto já foi extraído do seu volume. Essas informações são ainda mais imprecisas à medida que o aquífero é mais profundo. Da mesma forma, quanto mais profundo o aquífero, maior o tempo necessário para que ele seja reabastecido. Aquíferos como o Guarani, com uma área que abrange territórios na Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, contêm águas de milhares de anos, e a eventual reposição dessas águas demandaria também alguns milhares de anos. “Nós entendemos a exploração de águas fósseis como a mineração do aquífero. Assim como ocorre na mineração do ouro ou do minério de ferro, quando é feita a mineração da água, ela é retirada de lá e não podemos esperar que irá retornar”, explica Manzione.
Aquíferos menos profundos, entretanto, possuem uma dinâmica de extração e reposição mais rápida, uma vez que a água precisa percorrer menos camadas de sedimentos. Mesmo assim, sua utilização deve contar com um gerenciamento adequado. A escavação de poços irregulares é também uma ameaça para a qualidade das águas subterrâneas, porém, um dos maiores impactos nesse sentido é proveniente da falta de esgotamento sanitário ou de manutenção insuficiente, que contaminam as águas e restringem sua disponibilidade para as populações. Resultados do estudo “A revolução silenciosa das águas subterrâneas no Brasil” estimam que, no Brasil, a cada ano, são despejados 4.329 mm³ de esgoto na natureza, o que é equivalente a encher 5 mil piscinas olímpicas por dia. “A grande questão é que uma vez contaminado o aquífero é muito difícil você limpar ele completamente”, Manzione.
Piroli diz que o perfil do produtor agrícola que tem investido na captação de água para irrigação inclui tanto médios como grandes produtores, tanto no Estado de São Paulo como no Brasil. O uso dos sistemas de irrigação diminui a dependência desses produtores da chuva e aumenta sua produtividade. Esse aumento por sua vez resulta em mais recursos para investir em irrigação, instaurando assim um ciclo. “ Aqui é preciso alertar para o fato de que existe um limite. Não é possível que todas as pessoas retirem todas as águas que desejam dos córregos e rios, pois isso poderá resultar em escassez para outras pessoas. Principalmente aquelas que residem em regiões mais próximas à foz dos rios aqui em São Paulo”, diz. Ele diz que, em alguns períodos e em certos lugares do estado, este limite na utilização já se revelou de forma clara.
Em Ourinhos, água insuficiente
“Aqui em Ourinhos, no dia 17 de novembro de 2021, não havia água para ser captada pelas bombas da SAE, a empresa que capta e distribui água na cidade. Se não houvesse chovido naquela noite e nos dias seguintes, não haveria água para a população, que é de mais de 100 mil pessoas. Então, em alguns casos, já estamos chegando ao limite”, alerta.
Ele lembra que no interior de São Paulo as águas também servem como atração para visitação turística em rios, represas e balneários, além de servirem para movimentar hidrelétricas que atendem diversas cidades. “A água é crucial para um conjunto de atividades econômicas, além de atender pessoas e dessedentar animais. É esse conjunto que precisa ser considerado para que ninguém fique desassistido no Estado”, diz.
Ele diz que a maior parte dos comitês de bacia no estado já instituíram cobranças pelo uso da água por parte de produtores e empresários. São ainda valores baixos. ”Mas o que observamos é que a maior parte das pessoas ainda não está conscientizada quanto à possibilidade de falta de água. Muitas pessoas atribuem os problemas à falta de chuvas, mudança climática ou à inação dos políticos. Falta a percepção de que cada um pode fazer a sua parte para preservar a água.” Ele cita como exemplo a tendência de se construir casas novas impermeabilizando por completo o chão, o que impede que a água da chuva se infiltre e alcance as nascentes. “Isso vai reduzir o volume dos córregos e dos rios. Então é devido a uma somatória de pequenas e grandes ações nossas que os rios estão enfrentando problemas. O grande desafio é fazer com que cada um na sua casa se dê conta de que a água está cada vez mais indisponível. São muitas as demandas, e a água é sempre a mesma”, analisa.
Fontes:
Texto: Malena Stariolo e Pablo Nogueira/Jornal da Unesp
Imagem capa: Marcia de Freitas Alves/Teia Comunicação
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