Elucubrações de Primavera – Parte 1

Elucubrações de Primavera – Parte 1

Última atualização em 13/10/2021, 5h16min por A Trombeta

Por José Saul Martins*

Estava sozinho sentado na recepção no pronto atendimento do Padre Albino Saúde com uma matula e algumas roupas. Era noite de 9 de setembro de 2017. Uma senhora impaciente ao meu lado querendo enguiço com as simpáticas atendentes me afligia. -Seu José seu quatro já está liberado. Me acompanhe por favor. Bora uai não tenho outra saída pensei. Já no quarto da ala que fiquei internado veio uma moça bonita, a enfermeira de plantão, com uns apetrechos numa bandeja.

– Seu José (soava estranho ser chamado de José, apesar de meu nome ser José Saul, todos me chamam de Saul) vou colocar um scalp adequado em seu braço o senhor ficará com ele até a sua cirurgia. Uma veia do meu antebraço esquerdo foi a vítima.
Até o dia 11 de setembro foram dois de muitos laxantes e a tal da dieta líquida só no dia 9. A colectomia estava marcada para as 13h do dia 11. Há quatro anos.
Numa salinha ao lado do centro cirúrgico uma moça veio e fez um monte de perguntas e explicou que iria acontecer. Entendi tudo. Pelado sobre uma maca. Entramos numa sala com luzes brilhantes no teto com vários jovens paramentados como nas séries de TV. A sala não era grande. Uma moça pediu a uma outra se o kit para a emenda do meu intestino estava em ordem. Estava.
Deitado sem travesseiro ainda não tinha visto meu anjo da guarda: o dr Cássio Cantão. Logo veio um homem que destoava um pouco da idade dos demais e me levantou na maca. O anestesista. Me explicou que faria uma raquidiana para não ter dores pós cirurgia e em seguida faria a anestesista geral. Enquanto alisava minha espinha vi o dr Cassio num canto da sala lendo a Bíblia. Putz fudeu! A coisa era grave. Após a espetada nas costas deitei novamente. Dr. Cassio se aproximou pegou em minha mão e em tom carinhoso explicou que tentaria fazer a retirada de parte do intestino inflamado por vídeo, a tal laparoscopia, aquela que as pessoas fazem para reduzir o estômago devido a obesidade mórbida, mas se não desse certo abriria meu abdômen. Claro que abriu pois não foi tão fácil.

-Dr você está me tirando dessa dimensão e espero que me traga de volta – disse a ele. O anestesista escutou também. (risos).

A vaca da mancha branca na testa de nome Estrela do sítio de meu pai. Meu avô Pepe pelo caminho com a moringa de água e eu na frente fazendo troça com o velho espanhol. A escolinha da estação com a molecada e o trajeto. Não tinha merenda. O hambúrguer era um sapo feio que saia pulando do meio do pão. O tiro que o velho deu no sovaco do meu cachorro Leão (caramelo) que eu adorava. Os outros caninos, a Lontra, o Pelé, o Tupi, a Keith. A bolinha de gude e os cascudos do professor no grupo escolar. A dança mal sucedida com a menina no teatro de Língua Francesa durante a 5ª série. A brabeza de meu avô Saul conosco (netos e filhos) por não deixarmos ele e sua sesta em paz. O pneu trocado por sacanagem em Jurupema. Parecia o pneu de trator mas não era. A manifestação na faculdade durante a ditadura que apanhamos da cavalaria por reivindicarmos redução das mensalidades. Os beijos na colega de sala. Os nascimentos da Laura e da Marina. O avião que caiu no meu plantão justamente num domingo. O enterro de meu pai. A descoberta de minha Doença de Crohn. A mulher gritando que tinha defecado…
Uma sede imensa invadia meu corpo e minha alma. Afinal estava sem beber água fazia 48 horas. Acho que chamei a enfermeira da UTI e pedi água.

-Seu José (olha o seu José aí de novo) vou tirar esse tubo de sua boca e o senhor respira ok.
Queria água, água, agua e água. Ela puxou uma mangueira que saiu de minha garganta. Água. Ela me colocou de lado e colocou em minha boca um pingo (literalmente) de água. Vomitei. Que bosta. Que sede.
Após a limpeza da mulher que tinha defecado na UTI disseram que eu iria pro quarto. Ufa!
Por volta de 1h da madrugada sai da UTI e na porta me esperava o dr Claudemir que me abraçou e a Alessandra Monteiro, minha parenta, que trabalhava no Hospital Padre Albino. Estou em casa pensei. A enfermeira da UTI disse ao dr Claudemir que deveria levar o material extraído da cirurgia (1 metro de tripa) para o laboratório para a biopsia. Minhas entranhas inflamadas que foram extirpadas por dr Cassio estavam num saco plástico dentro de um balde de 15 litros. Ainda no torpor do Propofol disse em tom de brincadeira ao dr Claudemir que verificasse se meu saco e minha virilidade não estavam lá dentro do saco, dentro do balde (risos). O saco não estava dentro do saco. Ainda bem.

Foi um pulinho como aquele do Nei Armstrong na lua, entre o “respira ok” até o alvorecer do dia 12. Água, água, água. Dr Cássio tinha recomendado que às 8h eu poderia tomar um golinho de água. Nossa que sede. Confesso que nunca saboreei um gole de água tão intensamente e olha que meu guardião colocou um chorinho a mais, como aqueles que os ébrios dão para o santo. As 9h o Walmir, meu outro guardião, rendeu o dr Claudemir que estava um bagaço durante a vigília pós cirurgia. Após sete dias de internação tive alta e voltei para casa com o intestino soldado. Nos dez dias em casa ainda tive algumas elucubrações, talvez por ter ficado muito tempo sob o efeito do Propofol nas seis horas de cirurgia. O intestino ficou emendado certinho. No entanto mal sabia que um ser invisível estivera comigo naqueles dias de hospital e 10 dias depois se manifestaria violentamente sobre meu corpo. Era a tal da Klebsiella pneumoniae carbapenemase, ou para os íntimos, como eu fiquei dela: a KPC. Essa história se alongou por toda a Primavera e foi até meados do Verão seguinte. Mas isso fica para a parte 2.

*José Saul Martins é diretor do jornal e site A Trombeta

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