Capelinhas: mortes, tradição e marcas de uma época

Capelinhas: mortes, tradição e marcas de uma época

Última atualização em 21/08/2021, 10h51min por A Trombeta

Repostagem de matéria publicada originalmente em 22/05/2018 no site antigo do Jornal A Trombeta

– Até logo dona Augusta. Inté semana que vem – despediu-se o moleque carteiro saltando sobre sua égua Pombinha.

– Vá com Deus Sebastião. Até semana que vem – não sabia ela que aquelas cartas seriam as últimas do mensageiro Sebastião: o “Negrinho carteiro”.

Naquele mesmo dia, na primeira década do século passado, quando o mensageiro, completando sua rotina entregando cartas pelos sítios e fazendas da região de Fernando Prestes, entrou na estrada principal que ligava à Vila de Agulha tomou um baque no peito deixando a Pombinha cavalgar sozinha até perceber que não estava montada por seu cuidador e fiel companheiro.

O diálogo e os detalhes da cena narrada acima são fictícios, mas a história é real. Segundo a transmissão oral de pessoas mais velhas versa sobre esse estúpido homicídio que aconteceu em Fernando Prestes ainda em seus primórdios, quando um mensageiro que fazia a distribuição das correspondências pela zona rural foi morto a tiro por um fazendeiro.  O assassino estava em sua propriedade a comprando uma “carabina” e, querendo testar a arma, carregou-a e vendo um cavaleiro que vinha pela estrada resolveu atirar, não pensando na consequência de seu ato paranoico e assassino. O cavaleiro,  o “Negrinho carteiro”, como era carinhosamente chamado na região. Nesse local, onde o carteiro foi morto a tiro, foi erguida uma capelinha ou santa-cruz, assunto que será tratado nessa reportagem: rotas das tocaias.

Antes de falar sobre as capelinhas e as tocaias é importante contextualizar o leitor sobre aquela época. A partir de 1820, o interior do Estado de São Paulo começa a participar economicamente do país com a expansão agrícola e o ciclo do café. As primeiras fazendas seguiam as rotas pluviais e “picadas” deixadas pelas “bandeiras” que incursionaram Brasil afora partindo da cidade de São Paulo. Automaticamente as regiões entre os rios Tietê e Grande começaram a ser ocupadas principalmente com a doação de sesmarias na época Imperial, com a derrubada das matas e a formação de lavouras de café.

Segundo o livro “Fernando Prestes – resgate de sua memória” os primeiros sinais de povoação do local aconteceram por volta de 1891, com a extração de madeira nas proximidades do Rio Mendes. Em seguida a implantação da primeira fazenda cafeeira de Francisco Sales de Almeida Leite em 1894: a Fazenda Santa Albertina. Nos anos seguintes à formação do povoado de Fernando Prestes e em 1909, a estação ferroviária foi inaugurada oficialmente alavancando a economia local. No entanto, um dos primeiros núcleos urbanos desta micro região foi Aparecida de Monte Alto em 1848, devido a religiosidade do local. 

Com o surgimento de outros povoados foram construídos caminhos e estradas rudimentares que faziam as ligações entre esses locais. Eram nessas estradas que aconteciam as tocaias que vitimavam muitas pessoas e nesses pontos familiares e amigos dos falecidos construíam as capelinhas.

Western caboclo

Até meados do século passado, o banditismo preocupava muito a população que vivia atormentada por ladrões e malfeitores. Esse fenômeno não era exclusividade de Fernando Prestes, mas de todo interior de São Paulo e do Brasil. Histórias de criminosos como “Dioguinho” na região de Ribeirão Preto e de Lampião de seus cangaceiros no nordeste brasileiro lembravam o “western” em alusão a colonização do oeste americano e seus tiroteios mostrados pelo cinema posteriormente, mas já conhecidas pelos paulistas do interior: “western caboclo”.

Pedro Segura, de 95 anos, conta que havia muitas santa-cruzes na estrada que ligava Fernando Prestes a Aparecida de Monte Alto. Afirma que não eram todas as mortes motivo de construção de capelinhas, apenas naqueles casos que a vítima tinha uma família ou um bom relacionamento no local que residia. Referindo-se sobre histórias que seu pai contava, fala que o “carroção” (meio de transporte de agentes funerários) quase todos os dias buscava corpos as margens da citada estrada. Lembrou do caso de um homem que ao chegar em casa viu seu pai e irmão assassinados e saindo em busca dos criminosos os alcançou, onde hoje é a entrada do desvio de caminhões de cana (paineiras), matando a tiros três pessoas. Nesse lugar havia uma capela que fora demolida.

Muitas outras capelinhas foram demolidas com o asfaltamento da vicinal Adauto Ravazzi que liga Fernando Prestes a Aparecida de Monte Alto. Apenas três foram preservadas e duas estão em bom estado de conservação. Na estrada municipal que faz a ligação com o distrito de Agulha também foram demolidas algumas durante a implantação do Programa melhor Caminho, que retirou os barrancos e outras benfeitorias.

Entre Agulha e Fernando Prestes existem três igrejinhas, duas delas foram reconstruídas por Alfredo Passolongo, 80 anos, que residiu por muitos anos em seu sítio localizado à margem da estrada. Uma dessas capelinhas é a do “Negrinho carteiro” e a outra é de uma garota que também morreu de forma violenta atropelada por um boi bravio que estava sendo conduzido. “O boiadeiro trazia um boi no laço e ao cruzar com a menina não deu tempo de segurar e nem dela fugir devido ao barranco. Matou a mocinha a cifradas” disse Passolongo.  Nesse local além de reconstruir a igrejinha, Passolongo fez um jardim plantando árvores e flores cuidando até hoje.

Apesar da maioria não receber manutenção, as capelinhas resistem a dezenas e dezenas de anos. Tem algumas com mais de um século. No interior dessas igrejinhas existe uma grande quantidade de imagens de santos quebradas, quadros com motivos religiosos danificados, terços faltando contas, crucifixos, flores de plástico e até peças de roupa. A crença de que, não se pode descartar uma imagem benzida de santo quando quebrada faz que as pessoas levem seus “santinhos” às capelinhas e lá depositam.

Por ser o centro urbano mais antigo da micro região, Aparecida de Monte Alto era ponto de convergência de muitas pessoas que residiam em povoados e propriedades rurais vizinhas e ainda hoje por essas antigas estradas também é possível encontrar capelinhas incrustradas em suas margens. Uma que chama atenção por seu estilo arquitetônico, bem depredada mas impondo-se com um arco romano em seu pequeno portal de entrada está situada no caminho que liga Aparecida a Ariranha no bairro Tanquinho.

Brás José Motta, 74 anos, morador do Tanquinho desde que nasceu conta que não sabe quem faleceu naquele local, mas seus parentes diziam que fora uma tocaia. Disse que a estrada era um pouco mais acima rumo ao espigão e numa época que não se recorda o caminho foi mudado próximo ao Rio da Onça e então seus familiares também mudaram a capelinha.

O fim

O costume de se construir uma igrejinha no local de falecimento de uma pessoa as margens das estradas há muito tempo está em desuso. Nas estradas mais novas abertas em meados do século passado não existem as capelinhas e sim apenas pequenas cruzinhas fixadas no solo e também os falecimentos não foram vitimas de tocaias, apesar de ter sido mortes violentas por acidentes automotivos. Tanto que na via de acesso (SPA310/348) que liga Fernando Prestes a Rodovia Washington Luís, em vários pontos existem cruzes que marcam o falecimento de pessoas por acidentes.

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