Elucubrações de Primavera – Parte 4 (Epílogo)

Elucubrações de Primavera – Parte 4 (Epílogo)

Última atualização em 22/01/2022, 6h00min por A Trombeta

A conclusão desta série de crônicas após a primavera teve o propósito de mostrar a delonga de meu reestabelecimento que ocorreu de fato no verão.

Após minha alta tomei antibióticos por mais sete dias na UBS aqui em Fernando Prestes e quando se dirigia para tal procedimento usava máscara por indicação médica. Hoje usamos devido a pandemia. Mas naquela época era assustador e normalmente via pessoas amigas tristes e acabrunhadas pelos cantos achando que não “chuparia manga” naquele 2017. Quase.

Em meados de outubro quando tive alta a recuperação de minha ferida era demasiadamente lenta e o pus vazava sistematicamente e calmo como um riacho de planície. A solidão em meu leito trazia pensamentos e reflexões diversas sobre a minha existência. Sairia daquela situação? Apesar de estar diminuindo, a secreção insistia e era preciso fechar a ferida pornográfica e, secar. Numa de minhas tantas idas a Catanduva em retorno a visitas médicas o Walmir, meu parceiro e motorista na saída do consultório pediu ao dr Cassio:

– Dr fale com sinceridade, em sua experiência vai secar essa ferida do Saul?

A resposta não foi animadora. Eu sabia. Já fazia quase três meses e nada de fechar.

Vamos torcer e fazer o possível para que isso ocorra, mas essa bactéria é complicada (leia-se mortal) e a localização dela no abdômen dele é de difícil acesso aos antibióticos e provavelmente teremos de fazer uma nova cirurgia para remover a colônia manualmente.

Ficamos alguns segundos em silêncio. Quebrei o gelo dizendo olhando para um ponto perdido na brancura da parede do consultório:

– Garanto para vocês que essa ferida vai secar e não será necessário outra cirurgia – conclui dando um tapinha nas costas do dr. Cássio.

Não faço outra cirurgia nem pau juvenal e vocês dois vão pros quintos. Agourentos do cacete. Pensei. Com uma vontade doida de chorar pois sabia que isso era previsível e meu médico era forte e firme, mas precisava preparar o terreno (minha cabeça. Ops! Barriga) para essa possibilidade. Foi sincero.

Quase todos os dias mandava fotos de minha ferida para o Dr Cássio via WhatsApp. – Tá melhorando mas é preciso fechar e ver se não fica nenhum resquício da KPC dentro da barriga – Madona Santa essa ainda.

Desapego

Em um dia daqueles tantos que ficava a olhar o tal do ponto perdido, mas agora era nas portas de meu guarda-roupas, após uma crise de choro acabei fazendo as pazes com a morte e refiz em pensamento o que viria, na possibilidade de minha partida deste plano. A morte é algo assustador e solitário. É você que tem de encarar isso. Você parte sozinho e deixa seus planos, sonhos, amores, projetos e nunca tinha pensado em morrer. Naquele dia pensei.

A Marina terminava a faculdade naquele ano. A Laura já estava grandinha. A Paula tinha seu trabalho. Não ficariam desamparadas. Minha mãe já era e era velhinha e mulher de fé havia de superar. Meu jornal alguém continuaria. As demais pessoas queridas e amadas continuariam com suas vidas. A morte é algo solitário. Quem já passou por isso sabe que digo e quem por ventura passar lembrará o que estou elucubrando. Estava pronto. Mas numa pontada de soluço ainda me agarrava com as mãos e pulsos, ainda machucados de tantas furadas dos scalp das dezenas de frascos de soro que tinha tomado, em tudo que vislumbrei ser possível viver. Não seria aquela hora. A dona morte que vai a puta que a pariu.

Nunca fui um homem de rezas protocolares. No entanto, sempre proseava e proseio com meus santos. Naquele dia quase tive uma treta com São Benedito, mas acabei cedendo e desisti de xingá-lo. Pedi desculpas. Homem poderoso. Atrelado a minha religiosidade meia boca, mudei e acrescentei alguns hábitos alimentares e a ferida secava. Mas não totalmente. Ainda vazava. Mas já estava bom e poderia ficar com aquela merda de curativo para sempre. Dr Cássio dizia que tinha de fechar e secar. Putz.

Em meados de janeiro, quando já tinha aniversariado, ganhei de presente a cicatrização da ferida. – vamos observar por mais algum tempo – disse o médico. Vamos uai. Entramos em 2018 e no decorrer desse pós fechamento da ferida tive algumas dores bravas. Mas será o Benedito.

E por falar em São Benedito, certa ocasião numa cidade distante acompanhado de uma pessoa querida fui a convite dela a um templo de outra religião. Nunca tive preconceito e, respeitando todas as religiões, aceitei o convite.

A sala de espera era um local amplo e arejado e os “benzimentos” e as rezas eram por ordem de chegada. Havia umas 100 pessoas. Era um prédio simples numa periferia. As pessoas eram chamadas em grupos de quatro. Fui chamado antes da pessoa que estava comigo. Antes de entrar o meu grupo ficou esperando numa espécie de ante sala que era um corredor provido com bancos de madeira. Quando chegou a vez do meu grupo entrar uma moça nos direcionava em sentido horário aos “benzedores” e “benzedeiras”. Quando entrei no cômodo, um quarto com pouca luz, seguindo o fluxo a moça me disse:

-vá na sequência e o senhor vai ser atendido pelo irmão Benedito.

A pessoa que me benzeria era um homem negro, calvo, com minha estatura, trajando camisa branca de maga longa e calça de cor clara. Gelei. Lembrei do imbróglio que tive com São Benedito. Poxa tinha pedido desculpas e me reconciliado. Era muita coincidência. A pessoa que estava comigo sabia da minha doença, mas não do meu perrengue com o santo. O homem pegou em minhas mãos e disse:

– Está tudo bem e vai estar tudo bem. Vai dar tudo certo. Tenha fé.

Na sequência fizemos uma oração e fui embora. Naquele dia não falei nada sobre as “coincidências” com a pessoa que me convidou.

As dores no abdômen pós cicatrização era minha vesícula que estava zangada. Dr Cássio marcou para outubro de 2018 a cirurgia e reparou também uma hérnia gigante que ficou em decorrência da exposição excessiva da ferida purulenta. Foi um sucesso.

Dessa experiência forçada que tive algumas conclusões obtive. Viva com intensidade. Não desista daquilo que entenda valer a pena. Sonhe, pois é a locomotiva do trem chamado vida. Priorize pessoas do bem. Desvie mas se necessário encare e enfrente pessoas do mal. Seja justo. Ame como se não houvesse o amanhã. Faça aquilo que goste de fazer. Viver vale a pena e é preciso. Siga em frente sempre.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *